quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Crônicas Vampirescas - A Origem Secreta de Takiamura

Muito aconteceu desde o dia que começamos a acompanhar a história do Jovem Kuwabara. Nos últimos episódios, descobrimos que ele também é uma personalidade de um outro vampiro, chamado Takiamura. 
De onde ele vem? Quem é ele? E como tudo realmente aconteceu?
Todas essas perguntas serão respondidas no programa de hoje.

-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Meu caro Kuwabara,

Não tenho palavras para expressarmos o quanto estamos felizes por finalmente poder nos dirigir diretamente a você nessa carta. Sabemos que você ainda está se recuperando da sua última luta, mas existem coisas que precisam ser ditas antes que seja tarde demais. Uma tempestade está chegando e precisaremos da sua ajuda para que consigamos sair bem.
Já me adianto que essa carta tratará de assuntos delicados e você gostará do que você lerá, pois descobrirá que muito do que você acreditava ser verdade, muito do que você sentiu e muito do que você se lembra não existiu realmente. Se pudéssemos, te pouparíamos de toda essa situação, mas voltamos a dizer, uma tempestade está chegando. Para você realmente nos entender e entender tudo isso, vamos explicar algumas coisas: a) o que não é verdade sobre a sua vida e como sempre estivemos presentes, mesmo sem você notar; b) quem foi Michael Takiamura antes do abraço; c) quem foi Michael Takiamura depois do abraço; d) como viemos parar em Florianópolis, e; e) como você realmente nasceu.
Vamos aos fatos, não fomos abraçados aos 20 anos, mas sim aos 32; não somos o 7º filho de uma família só de mulheres, isso uma das lendas de como nascem os lobisomens; não somos o filho que treina artes marciais de uma família de vendedores de macarrão, isso é Kung-fu Panda; não tiramos nossa motivação da morte dos nossos pais na nossa frente, enquanto éramos crianças, esse é o Batman; não tivemos nosso grande chamado para a vida contra o crime depois de tentarmos enfrentar dois grandões indo incomodar uma garotinha, esse é o Blankman.
*
Sabemos que você já se questionou se havia alguém lá em cima olhando por você ou facilitando alguma coisa para o seu lado. Temos uma boa e uma má notícia: a má notícia é que não tem nada lá em cima esperando pela gente. A boa notícia é que havia alguém olhando por você. Muita gente, olhou e ainda olha por você. Queremos que você note alguns pontos realmente bem interessantes sobre a sua vida e algumas das “coincidências” e “lances de sorte da sua vida”.
A) quando você “foi abraçado”, mesmo com a “morte” de dois Brujahs, ninguém te questionou nada ou te perturbou sobre isso;
B) você conseguiu emprego e proteção do Takashi quase que instantaneamente, mesmo sendo um filho da lua estrangeiro;
C) você ganhou um par de espíritos protetores mesmo sendo um “neófito”;
D) quando você invadiu a casa do Nosferatu, você foi caminhando direto para o sub-solo, mesmo sem conhecer o local e lá, você correu para pegar algo que não tinha a menor relação com a missão (por sinal, aquilo ainda está escondido);
G) Alguém te enviou para entregar uma carta para o senhor La Sombra que quase te forçou a ir para uma missão e estragar diretamente os planos do Júlio;
F) No dia que você ganhou a Yuki-onna, apareceu um livro com a lenda da Donzela de Gelo e dos Irmãos da Tempestade;
G) Leon sabia exatamente onde e como te encontrar, além de saber que você era e da possibilidade de você ser um shifter;
H) Por fim, subitamente, a Jéssica achou que seria uma boa ideia ter você como um dos peões dela, mesmo com você tendo a fama de trazer problemas;
Viu? Essas são apenas algumas das situações onde influenciamos e mexemos alguns pauzinhos para o seu bem. Para o nosso bem. Isso, que ainda nem falamos dos apagões e dos sonhos que você teve. Na realidade, éramos nós que estávamos assumindo o controle.
Mas bem, agora que você já sabe o que não é verdade na nossa história, vamos contar o que É verdade.
*
Nasci no dia 13 de outubro de 1972. Era o primeiro filho que vingou de Hitoshi Takiamura e Teruko Takiamura, fui registrado com o nome de Michael Haru Takiamura. As fotos mostram que era bebê gordinho e saudável.
Na minha infância, passei bastante tempo brincando com as outras crianças, na Liberdade. Por causa da minha grande imaginação, acabava criando novos jogos e formas de brincar. Fui uma criança feliz e arteira.
Na minha adolescência acabei me isolando. Passava um bom tempo comigo mesmo. Seja estudando, ouvindo música ou lendo. Fazia as mesmas coisas que os outros jovens, mas tinha a companhia da minha imaginação. Fui me fechando e me tornando cada vez mais quieto.
Meus pais se preocupavam comigo, mas explicava para eles - no auge da minha sabedoria dos 14 anos - que era muito mais divertido ficar sozinho do que sair com aquele bando de Zé Ruela que não sabia a diferença entre curtir um anime e se tornar uma árvore de natal por causa daquele anime. Se quisesse fazer algum amigo, criaria um para mim. Também, foi nessa época que comecei a fazer aulas de Kendô com Otoosan e ajudar a Okaasan com Ikebana.
Foi nesse ritmo que segui minha vida por mais 7 anos. Como um cara normal, mas meio imaginativo que estava orgulhosamente na 4 fase de engenharia de mecatrônica na Universidade de São Paulo. Mas, como diria o poeta, a vida é uma caixinha de surpresas.
Descobrimos que aqueles problemas que Otoosan tinha para ir no banheiro eram consequência de um câncer intestinal. Mais do que isso, o câncer já estava em estado avançado e Otoosan faleceu em menos de 4 meses depois. Daí, em diante, minha vida começou a entrar em espiral descendente.
*
Tentei seguir com a graduação e me formar, mas tive que parar pois algum tempo depois Okaasan quem ficou doente. Sem seu esteio e seu parceiro, ela perdeu o rumo e parou de se cuidar. O laudo médico pode até dizer que ela morreu de uma pneumonia mal cuidada, mas sei que ela morreu de amor.
Não que sinta algum tipo de ressentimento pela morte dos meus genitores, mas o fato é que não estava preparado para o que viria em seguida e acabei comendo o pão que o diabo amassou. Tive que me virar em bicos trabalhando em lanchonetes, sendo homem sanduíche e vendendo quase tudo o que tinha.
O Mesmo assim, não desanimei. Achava que teria um futuro grande esperando por mim e passava as noites sonhando em como me tornaria uma pessoa foda e reconhecida.
De certa forma, creio que esses pensamentos e fantasias me ajudaram bastante. Quando não sabia a quem recorrer ou pedir conselho, imaginava Otoosan com suas palavras de sabedoria. Ou quando estava com medo, imaginava Okaasan me dando coragem – foram muitos momentos onde senti medo ou fiquei em dúvida de como agir.
*
No meu aniversário de 24 anos, minha vida começou a mudar. Comecei a ter a estranha sensação de que alguém me seguia e observava. Na época parecia algo surreal que pudesse ter algum tipo de stalker, mas a sensação não ia embora.
Logo depois do meu aniversário, achei um panfleto na caixa de correspondência, dizendo que a nipo-paulista tava procurando professores de japonês. Foi uma entrevista fácil. Aparentemente fui o único que se interessou pela vaga. Com desse emprego, tudo começou a fluir e logo em seguida consegui uma vaga para lecionar Kendô.
Comecei a me sentir mais confiante, mas aquela sensação de ser seguido não sumia.
Aos 26 anos, me mudei para uma pequena kitnet alugada perto da Augusta. Ficava meio contra-mão e era numa vizinhança meio tensa, mas era algo que consegui com o MEU trabalho e amava morar lá.
Aos 27 dei meu grande pulo em nível social e comprei uma lambreta vermelha. Cara... como amava aquela lambreta vermelha.
Aos 28 anos minha vida mudou novamente ao conhecer a mulher da minha vida.
Aos 32 ela me matou.
Mas uma coisa de cada vez, não precisamos por os carros na frente dos bois.
*
Pois bem, tudo começou alguns meses depois de comprar a lambreta vermelha. Durante a última aula noturna, notei que havia um aluno novo a mais na turma. Achei aquilo estranho porque sempre me avisam quando vai entrar alguém novo para me preparar e passar atividades mais leves e explicar um pouco sobre o caminho da espada. Esperei até o fim da aula e fui falar com meu novo aluno.
Quando ele tirou o ken, meu queixo foi ao chão. Por trás daquele capacete, havia uma bela garotinha com cabelos verdes e grandes olhos. Mais do que isso, era uma menina fofa e doce que ficou conversando comigo, de forma animada, até fechar a sede. Ofereci carona para ela, mas ela disse que estava de boa e que não precisava me preocupar.
Aquilo começou a fazer parte da minha rotina. Trabalhava 3 noites por semana na parte do Kendô e em todas as aulas ela aparecia e ficava conversando comigo até a sede fechar, indo embora sozinha.
B – que levou um bom tempo até descobrir que seu verdadeiro nome era Beatrice – era uma garota extramente interessante. Havia algum tipo de magnetismo nela que fazia sempre querer estar perto dela e me sentia à vontade para falar sobre qualquer coisa. Apesar de parecer tão jovem (ela disse ter 18 anos, mas tinha quase certeza que ela tinha uns 15), ela costumava ter opiniões bem maduras e um tanto quanto secas sobre filosofia e relacionamentos interpessoais.
E assim seguiu-se minha vida por mais um maravilhoso ano e meio. B-chan se tornou, mesmo com as mudanças de humor, minha melhor amiga e minha confidente.
*
Faltando 3 meses para completar 29, B-chan me veio com um convite estranho:
- Papai quer te conhecer e te convidou para ir lá em casa no fim da semana, logo após os treinos.
- Ahn?! Como assim? - Fiquei realmente desnorteado com aquele convite.
- Bem – Começou ela – Falo de você para ele há algum tempo. Pra ser sincera, falo bastante de você para ele. Finalmente, consegui despertar algum interesse nele para te conhecer.
- B-chan, você tem certeza que essa é uma boa ideias? Sabe, não sei se vou causar uma boa impressão. Quer dizer, sou apenas um mero professor de uma associação cultural.
- Não se preocupe, ele vai gostar de você, basta você ser você mesmo. Talvez você também conheça um amigo da família que vai se interessar bastante pelas suas habilidades com a espada.
- Céus. Gostaria mesmo de ter a sua confiança. Mas me diga, que tipo de pessoas são esses caras?
- Nhaaa, relaxe, você vai descobrir amanhã. Agora tenho que ir. Kissu, kissu.
E saiu saltitando sem dar tempo de responder ou pensar em algo. Às vezes ela fazia esse tipo de coisa e tinha essas mudanças súbitas. Quase parecendo ser outra pessoa.
A visita na casa de Leon foi experiência bem bizarras. Tive que falar sobre os mais diferentes assuntos, responder aleatórias e beber bastante vinho.
Também tive que enfrentar o amigo da família (Jeremias) numa partida “amistosa” de Kendô. Digo amistosa porque fiquei quase 30 minutos desviando e tentando aparar (com pouco sucesso) os golpes dele. Estranhamente, ele nem parecia ter se cansado. Me senti o pior dos espadachins e ainda tive que ouvir uma série de comentários sobre a minha respiração, postura e como parecia esquecer que um artista marcial deve encarar seu corpo como um instrumento para servir à arte de guerra.
Saí de lá às 4 da manhã meio inebriado com o ar, meio sem saber o que tinha acontecido e com a estranha sensação de ter sido testado em níveis que não compreendia muito bem.
No treino da semana seguinte, B-chan não apareceu sede. Foi a primeira vez que ela faltou desde o dia que eu a conheci.
No treino seguinte, ela também não apareceu.
Lá pela seguinda semana comecei a com medo de ter dado alguma bola fora infinitamente grande. Pensei em passar perto da casa dela, mas notei que também não me lembrava direito onde ela morava. Ora tinha certeza que a casa ficava numa travessa na Faria Lima, ora poderia jurar que a casa ficava em algum ponto perto da Paulista.
*
Com o sumiço dela, fui me isolando mais e mais. Minhas conversas comigo mesmo se intensificaram.
Outro ponto estranho era que ninguém parecia se lembrar dela, ou saber quem era Beatrice.
Como isso era possível? Será que minha amiguinha era apenas uma tentativa de um solteirão de quase 30 anos de se sentir menos sozinho? E se, tudo não passou de um sonho? Ela era real? O que é mesmo real? Estou enlouquecendo? Pode um louco questionar sua sanidade? Aquele zumbido no fundo da minha cabeça eram...
...vozes?
Andava distraído, sem fome, meio desanimado. Fiquei nesse estado de desolação por uns 9 meses. Perdi quase que 15 kilos e quase fui expulso da associação.
*
Mas, como uma pasta de dente chega ao seu fim, toda essa sensação ruim de não saber se ela existiu, de questionar minha sanidade, de ficar ouvindo aquelas vozes ao fundo acabou.
Num instante, estava lá.
No outro no estava.
Assim como o medo do escuro parece algo bobo durante o dia, todos os medos que senti da falta da minha B-chan passaram.
Mal sabia que minha vida estava prestes a dar um novo salto.
*
Mais ou menos uns 3 dias depois de tudo isso acontecer, quando estava prestes a dormir depois de uma aula excepcionalmente animada, a campainha toca.
Achei aquilo realmente estranho, afinal, não tinha amigos, quanto mais amigos que pudessem aparecer naquela hora da noite. Sorrateiramente, fui até a cozinha, peguei um facão e fui atender a porta.
Lá estava ela. Baixinha, com cabelos verdes e com uma expressão extremamente irritada. Cheguei a me questionar se estava feliz por vê-la. Para ser bem sincero, acho que estava mais é com medo – muito medo – dela.
Creio que em outras situações, iria abraçá-la e dizer o quanto senti sua falta. Uma voz interna me disse que isso era uma idéia ruim. Ela se adiantou e falou apenas duas frases.
- Papai quer vê-lo. Vamos?
Aquilo parecia mais como uma ordem do que um convite e não teria coragem para desobedecer qualquer coisa que ela me pedisse naquele momento.
Chegando lá, encontrei um Leon totalmente diferente. Ao invés daquele cara mais estilo paizão doce e meio rockeiro, o Leon que me esperava estava mais para grande homens de negócios, com um terno que parecia valer muito mais do que a minha casa e minha lambreta vermelha juntas.
O que B tinha de irritada e mal humorada, Leon completava com um leve interesse e fria cordialidade.
- Sinto muito pelo tratamento recebido, ela não tem passado muito bem nos últimos dias desde que perdeu um brinquedo. - Ele disse, ao me cumprimentar. Aquilo não me fazia o menor sentido e ele não parecia ter intenção de me explicar. Ao invés disso, ele seguiu: - Por favor, tome um assento e beba um gole de vinho, nosso tete-à-tete será breve, mas nem por isso devemos esquecer dos bons modos. - Comecei a beber e me questionar quando que essa noite iria acabar.
- O motivo pelo qual eu o convoquei aqui foi para lhe fazer uma proposta de emprego. Tenho ouvido tanto sobre você - ele se vira para ela - que pretendo lhe dar uma chance, mesmo me questionando sobre as suas capacidades para me servir.
- E qual é o serviço que você tem em mente, senhor Leon? - Quando que essa sessão de ofensas gratuitas iria acabar? E qual é o motivo para isso?
- Quero que você trabalhe como acompanhante, motorista, segurança e secretário particular para minha descendente. Você trabalhará das 19:00 às 6:00, cuidará da manutenção dos nossos carros e ficará por perto para fazer o que ela requisitar. Você não ouvirá nada, não falará nada e será invisível em todo o resto do tempo, à menos que te digam para fazer o contrário. O seu salário inicial será de R$5.500,00 mais todas as despesas de alimentação, transporte e roupas. Além disso, você receberá alguns treinamentos sobre como se portar, direção defensiva, luta com armas e quaisquer outras habilidades que acharmos que você precisa melhorar. O seu turno começa em uma semana, que acreditamos ser o tempo necessário para você se despedir daquele local onde você trabalha, conseguir roupas descentes e poder descansar. Alguma pergunta?
Ainda hoje, não temos certeza se perdemos algum ponto da conversa, mas não nos lembramos de ter dito que aceitaríamos o serviço mas estávamos com medo de dar uma de engraçadinho e perder essa grande bocada.
*
Entrei nos meus 30 anos, com um emprego muito bom. Ganhando muito dinheiro mas comendo o pão que o diabo amassou. Trabalhar para B era algo maravilhoso, mais ou menos na metade do tempo. Na outra metade, era uma amostra grátis do inferno.
Nessa época que comecei a notar algumas coisas estranhas tanto nela quanto no seu pai. Ambos eram extramente caprichosos e com graves mudanças de humor (bipolaridade?), eles nunca saíam durante o dia, iam com frequência em uma sala comercial na Paulista, pareciam ter longos diálogos falando sozinhos e tinham quase que um 6º sentido para saber o que estava pensando. Ambos pareciam ter uma queda para se envolver com garotos e garotas de programa, mas sem nenhuma preferência em especial. E tinham alguns pedidos realmente estranhos.
No top 5 dos pedidos mais sem noção de B, consigo listar:
* o dia que ela pediu para cobrir todos os espelhos da casa para a visita de um futuro associado;
* que ela não me deixava exterminar nenhum tipo de animal ou ser vivo que estivesse na casa ou nos arredores, por mais sujo ou nojento que pudesse ser;
* umas 4 ou 5 vezes que ela pediu para lamber o meu pescoço;
* ela mandou me alimentar com comidas ricas em ferro e tomar bastante sol;
* uma vez por semana, ia buscar e enviar itens no setor de doação de sangue no hospital;
Eles sempre tinham aquele clima de que estavam prestes a entrar numa guerra e precisavam se preparar para quando as batalhas começassem.
Hoje, vemos como fomos tolos. Ou inocentes que não enxergavam uma palma na frente dos narozes. Se tivesse o mesmo clima que eles, talvez não estivesse morto, agora.
Hoje, vemos que fomos caras de sorte. Se tivéssemos no mesmo clima que eles, talvez não estivéssemos onde estou agora.
É como naquela música: “Se soubesse tudo o que sei agora, teria feito tudo exatamente igual”.
Mas bem, vamos falar, agora, sobre como morri e como viemos parar onde nós estamos.
*
Já estava trabalhando há dois anos e gostava muito daquilo. Apesar disso, era nítido que a situação estava ficando cada vez mais tensa. Tanto B quanto Leon andavam muito ocupados, com reuniões e mais reuniões. Meu trabalho era muito o de motorista.
Numa fatídica noite, tudo deu errado. Era uma reunião num bairro mais isolado e com fábricas abandonadas. Estava esperando, calmamente, fumando meu cigarro e olhando para o horizonte, quando ela veio muito puta. Parecia uma criança mimada que não ganhou um brinquedo de natal, uma criança assustadora, mas ainda assim uma criança. Ela entrou batendo a porta e mandou voltar rápido pra casa, porque tudo tinha saído errado e Leon precisava ser informado o quanto antes.
Minhas memórias são confusas e tenho palavras para descrever como foram assustadores aqueles instantes de carro girando, carro batendo e sendo empurrado. Tudo isso há menos do que um kilômetro de casa. Meu último pensamento como um ser vivo foram algo do tipo, eles realmente estavam seguindo a gente.
*
Look around, around, around...

Acordamos num quarto estranhamente familiar, mas sem sabermos bem onde estávamos. O mundo parecia meio embaçado, meio desfocado. Como se as cores tivessem sido alteradas. Nosso paladar e olfato pareciam meio dopados e sentíamos dor em cada maldito osso do nosso corpo.
Onde estamos?
Eu não sei.
Sim, você sabe.
O que aconteceu?
Você não lembra?
Não, não lembro. Me ajude.
Ouvimos vozes discutindo. Duas pessoas berravam bem perto da gente. Quase conseguíamos ouvir os gritos na nossa cabeça.
Deixe sua mente flutuar.

- COM QUE DIREITO VOCÊ ABRAÇOU ELE?
- COM O DIREITO DE QUEM NÃO QUERIA QUE ELE MORRESSE.
- HAVIAM OUTROS JEITOS DE EVITAR A SUA MORTE.
- PARTE DO CRÂNIO DELE ESTAVA EXPOSTO, NÃO CONSEGUI CONTAR QUANTOS OSSOS QUEBRADOS E ELE TAVA TODO DESFIGURADO. MESMO SE ELE SOBREVIVESSE COM O SANGUE, TERIAM GRANDES CHANCES DE ELE VIRAR UM NÃO-FUNCIONAL. É ISSO QUE VOCÊ QUER? DESPERDIÇAR TODO O TEMPO INVESTIDO APENAS POR DETALHES COMO IMAGEM PÚBLICA?
*soc, tow, pow*
Insira aqui qualquer onomatopeia para tapa forte pra caralho. Aquele tapa parece que foi dado na nossa cara. Aquilo nos deixou com muita raiva. Sentimos, pela primeira vez a ira vermelha subindo pelo corpo. Ainda bem que estávamos presos.
- Sua garota de tola.- O tom de voz voltou ao timbre mais sombrio, frio, calmo e assustador. - Depois de todos esses anos comigo, achei que você já tinha aprendido alguma coisa relevante. A vida de outros, principalmente do rebanho, não vale tanto quanto me expôr. Mas bem, vá ver a sua cria que pensarei em como resolver as suas falhas.
Pausa e silêncio.
Deve ter demorado uns 50 minutos até B aparecer. Vê-la foi quase como ver um anjo. Na época, não saberíamos dizer o que estávamos sentindo, mas era algo bem próximo ao amor.
Não vamos entrar em detalhes sobre como foram nossos primeiros dias, pois você tem uma ideia de como foi. Passamos a primeira semana amarrado naquela cama enquanto conversávamos e provávamos que não iria fazer nenhum tipo de besteira como tentar voltar para a minha vida.
Depois de termos sido transformado, nossa rotina passou a seguir um ritmo constante. MUITO acelerado, mas constante. Éramos realojados a cada 4 meses, sempre morando em quartos escuros que tinham uma cama, livros, abajur e espaço para treinar.
Passamos 7 anos tendo contato apenas com B e Jeremias. Eles vinham visitar 3 ou 4 vezes na semana, sempre sozinhos e nos treinavam nas atividades mais variadas. Jeremias falava sobre a vida vampírica, sobre artes, exercícios, filosofia, etiqueta e cultura geral. B falava sobre a família, a loucura, ocultismo, a Rede e os dons vampíricos.
Em 3 ocasiões especiais, recebi a visita de Leon. Em cada visita, ganhei uma personalidade nova: Stephany Todd (baseada em B), Isaías Shepherd (baseado em Jeremias) e Ley Stampler (baseado em Leon). Não vou falar sobre eles, pois ainda me dói muito pensar naqueles que se foram. Além desse lance das personalidades, Leon versava sobre o nosso lado da família.
Não sabemos à partir de qual geração foi desenvolvido a linha do camaleão, mas sabemos que os membros do nosso ramo conseguem se ligar de uma forma diferente à Rede. Em diferentes situações e por diferentes motivos, conseguímos sintetizar um pedaço da Trama, buscar seu conhecimento e seu conteúdo criando uma nova entidade, com conhecimentos e personalidades próprios. O conhecimento e correta manipulação dessa habilidade permite criar vampiros extremamente e adaptáveis à qualquer tipo de situação.
No nosso caso, os laços são criados pela ligação de sangue. Cremos que, de alguma forma, quando nos enlaçamos à alguém, nosso cérebro se adapta ao sentimento criado pela pessoa que nos enlaçou. Esse processo de adaptação permite essa criação de um novo ser. Podemos dizer que somos os pais (junto com a pessoa que nos enlaçou) dessa nova personalidade.
O processo de liberação é um pouco mais dolorosos e depende de cada caso. Em alguns casos, pois precisamos praticamente matar essa personalidade, já em outros precisamos não darmos mais motivos para elas ficarem aqui. Além disso, quanto mais tempo, mais adaptado e maior seja a força de vontade da personalidade, mais difícil será destruí-la.
E a vida foi seguindo. Li, estudei, treinei a aprendi muito. Sabia que estava sendo preparado para algo, apesar de não ter ideia do que era.
*
Na terceira visita de Leon, ele me disse que meu treinamento recluso estava chegando ao fim e que iria trocar a vida de Tremere aprendiz para uma vida no mundo lá fora.
Quando ele disse isso, achei que finalmente iria conviver com outros vampiros ou usar meus dons para poder curtir uma vida boa, mas estava errado. A noção de vida no mundo lá fora era que poderia viver num cubículo 2x3, numa vizinhança barra pesada da zona leste (não que existam vizinhanças boas na zona leste, mas aquela era especialmente ruim), com direito a sair 3 vezes por semana para me alimentar e trabalhando dentro de casa fazendo sacolas.
Ao me apresentar ao meu novo cafofo, B me explicou que se sobrevivesse dois anos seria promovido de um grupo semelhante ao Esquadrão Suicida (tive que pesquisar para entender que ela estava falando daquele time dos quadrinhos) e poderia não morrer imediatamente se falhasse em alguma missão.
*
De alguma forma, consegui sobreviver. Se existe algum Deus, ele deve ser malkaviano. Cheguei muito perto de ser descoberto e quase me tornei mestre em ofuscação nesse período.
Nesses anos de serviço, aprendemos um pouco sobre onde tínhamos nos metido.
Ele tem algumas personalidades, a que mais fala comigo é a o Stanley. Creio que as personalidades dele tem alguma ligação direta com o nome delas. Afinal Stan é o apelido natural de Stanely e é terrivelmente parecido com Satan (apesar de ser bem acurado). A personalidade que se apresenta ao mundo é Leon e parece ter vindo de camaLEON como a nossa linha. Ainda cremos visto uma terceira personalidade que era mais marcial e voltada para o combate (foi essa a personalidade que te ensinou a despertar as outras).
Conhecemos três personalidades de B: Beatrice, Bianca e Bill. A princesa doce, a rainha louca e o príncipe guerreiro. Você conheceu apenas Bianca com a sua loucura, mudanças de humor e vício pela vitae e Bill com seu jeito prático de ver as coisas que é capaz de estacar a própria cria para ela aprender a ser um malkaviano de verdade.
Você não conheceu Beatrice e isso é algo que deveria te deixar triste. Beatrice é como um frescor de primavera no nosso mundo hostil. Ela é a garota por nos apaixonamos, que passou tanto tempo conversando conosco e discutindo sobre as mais diferentes coisas. Meu coração se alegra só de lembrar da forma como ela mexia a cabeça para tirar a franja de cima dos olhos ou a forma como ela me encarava mascando chiclete e conversava comigo.
Poderíamos preencher mais de dez cartas só para falar sobre ela, mas cremos que isso não seja tão necessário.
Leon é o criador de B e parece ter alguma influência na cidade. Ele se juntou a alguns outros membros/mortais de certa influência e criaram um grupo sem nome que eles chamam de a Organização.
Ela é uma organização paramilitar multidisciplinar/culto de guerra/tentativa de um grupo de seres poderosos de não morrer para os planos de outros seres poderosos. Nessa vibe meio culto meio grupo militar, ela não força ou evita guerras, apenas espera, se prepara e toma um lado.
Ela funciona em células espalhadas por todo o país (talvez por todo o mundo). Essas células são semi-independentes ou pelo menos as células daqui de São Paulo sejam assim.
O tempo que ficamos em São Paulo, lidamos com uma (ou algumas) célula(s) paulista(s).

Mas o que mais importa, e como importa, foi que sobrevivemos e fomos promovidos a um time menor da organização. Apesar de não ser muita coisa, já era o suficiente para não morrermos instantaneamente numa falha.
Em todo o meu tempo de vampiro, consegui descobri poucas coisas sobre a Organização. Pra ser sincero, você descobriu muito mais do que. Mas vamos ao que descobri:
  1. A Organização não possui um nome em especial;
  2. Ela é uma organização paramilitar multidisciplinar/culto de guerra/tentativa de um grupo de seres poderosos de não morrer para os planos de outros seres poderosos;
  3. Ela funciona em células espalhadas por todo o país (talvez por todo o mundo);
  4. Ela possui recursos;
  5. Ela não força ou evita guerras, ela apenas espera, se prepara e toma um lado;
  6. Existem pelo menos 3 níveis na organização: as pessoas que aparentemente mandam, as pessoas que não morrem imediatamente ao cometerem um erro e as pessoas que morrem ao cometerem um erro;
Enquanto era membro do Esquadrão, trabalhava sozinho. Recebia mensagens de um celular especial dizendo para onde deveria ir. Lá encontrava um pacote com equipamentos e informações da missão. Nunca me envolvi ou soube quem eram os outros membros ou no que realmente estava trabalhando.
Quando fui promovido, B me acompanhou em alguns trabalhos. Foi num desses trabalhos onde as coisas começaram a dar errado, de novo.
*
O trabalho era relativamente simples. Perigoso, mas simples. Iríamos com um carniçal até perto de uma base anarquista para copiar alguns arquivos militares de um computador de uma sala em especial.
Não sei em que ponto nós falhamos, mas enquanto estávamos copiando os arquivos, a sala foi invadida. B conseguiu se ofuscar, mas não fui tão rápido. Não importa o quão vampírico você seja ou o quão bem treinado você esteja, uma bala de semi automática sempre dói. Céus como aquilo doeu. Meu último pensamento antes de cair foi que deveria ter ofuscado mais rápido.
*
Acordei no meu quarto, recebendo uma transfusão de sangue, meu corpo me sentia um queijo suíço cheio de sangue. Meu cabelo já estava duro e seco, assim como minha roupa, assim como a coberta, assim como a cama, assim como todo o resto do maldito quarto.
B estava no telefone, ela falava num tom rápido enquanto andava pelo quarto. Já tínhamos aprendido a usar os auspícios para futricar nas ligações alheias e conseguir ouvir ela falando com Leon.
- Foi terrível – disse ela – acho que eles descobriram o segurança, ou tinham algum tipo de defesa no computador. Não sei. Só sei que que quase morremos.
- Ao menos, vocês conseguiram a informação?
- Bem, parcialmente, não tudo, mas não tenho...
- Ótimo. - Cortou ele – vocês acham que foram vistos ou identificados?
- Não tenho certeza. Talvez sim. Tomei minhas precauções com aqueles que consegui ver, mas existem as câmeras. E se eles pegaram Tobias, bem, provavelmente …
- Entendo. Então realmente, precisarei adiantar um dos planos. Como está o garoto?
- Ele está aqui deitado na cama, recebendo uma transfusão de vitae, fingindo que está dormindo para ouvir essa ligação.
- Estaque-o que depois passarei mais informações.
Ao ouvir isso, tentei me levantar e fugir, mas estava muito ferido e fui facilmente estacado pela B.
*
Acordei uma semana depois. No mesmo quarto, com uma mala preparada na minha frente. Leon estava sentado com as pernas cruzadas olhando pra mim. Sua roupa bem alinhada, seu olhar sereno e sua cadeira bem estofada contrastava totalmente com o resto do quarto ainda ensanguentado. Havia uma mala de viagem na sua frente.
Uma vez disse ao fundo: a julgar pelo tom do sangue, ficamos 2 ou 3 dias apagados, a roupa e a postura indicam que ele passou por bastante trabalho e está numa posição de liderança e sutil afetamento, quase como um Ventrue...
- Finalmente você acordou, quero que você preste bem atenção e só faça perguntas quando for lhe dado à palavra, pois temos algum tempo mas ele precisa ser bem utilizado. - Me sentei para ouvir melhor as instruções. - Sua existência está ameaçada aqui e ter você aqui me colocará em uma possível situação de risco. Normalmente isso traria a sua morte, mas você já mostrou seu valor e lhe concederei o privilégio de poder viver. Falei com alguns associados [será que era a associação?] e consegui negociar bons termos. Preste bem atenção atenção no que eu expliquei para meu associado:
1º Minha cria abraçou por impulso uma pessoa que estava de olho há algum tempo;
2º Esse neófito trabalhou por algum tempo para mim e eu estava quase conseguindo trazer essa cria ao público sem causar nenhum tipo de mal-estar na cidade;
3º Ele e minha cria cometeram uma falha em um determinado trabalho e estão sob risco de vida;
4º Mandarei cada um para o exílio em um lugar diferente, com as memórias de meu último descendente apagadas para ele achar que é um neófito abandonado;
5º A cria trabalhará em troca de abrigo, segurança e moradia até ele conseguir se manter vivo;
6º Meu associado tem plenos direitos de fazer o que quiser desde que não leve a cria à morte final e corrobore com a história do neófito;
7º Minha assinatura nesse contrato se dará por você se ligando ao sangue com meu associado.
- Alguma pergunta?
Balancei negativa a cabeça.
- Ótimo, agora vamos aos pontos que VOCÊ precisa saber:
1º Não vou apagar a SUA memória.
2º Quando você se enlaçar, será um novo EU para você;
3º Modificarei a memória de seu NOVO eu;
4º Foi foi abraçado por acaso, quando acordou encontrou ESSA carta [agora você já sabe como conseguimos a nossa carta];
5º Você usará esse tempo em Florianópolis para TREINAR e se aperfeiçoar. Dentro de 10 ou 20 anos acontecerão eventos tumultuosos e quero ter bons soldados.
- Alguma pergunta?
Balancei novamente a cabeça.
- Ótimo. Agora vem a última parte do que precisamos fazer. Mas não serei quem fará isso. O próprio Leon será responsável por levar seus outros EUs ao alento. Change.
Foi a primeira vez que vimos ele mudar. Num simples piscar, os olhos dele mudaram daquele azul gélido para o castanho tão calmo, doce e tranquilo.
*
Uma personalidade não some simplesmente. Não é o tipo de coisa que pode simplesmente morrer. Esse é um ponto importante e quero que você preste realmente atenção nisso. Cada personalidade É parte de você. É parte de nós. Somos todos um, mas o sangue que corre em nossas veias potencializa cada parte e cada traço, junta com o sangue que recebemos e acaba criando um novo ser.
Quando você olhar novamente para suas personas quero que você entenda que existe um pouco de cada um dos seus aliados dentro de você.
O processo de encontrar o alento consiste em compreender isso e se tornar uno com a sua persona e notar que não existe razão para que a sua mente esteja separada se podemos estar juntos (em outras palavras, você precisa não dar mais motivos para aquele pedaço da sua personalidade estar separado de você). Não é um processo fácil, mas é possível de fazer.
Depois de muito tempo, conseguimos levar a um alento temporário Stephany, Isaías e Ley. Em algum canto de nossa mente, existem três personas quase tão velha quanto nós e que logo despertarão.
Depois dessa experiência quase que religiosa, Stanley voltou ao controle, se levantou e nos disse.
- Seu voo sai em 3 horas, aproveite para tomar um banho, na sua bagagem tem instruções de onde ir. Você ficará na casa de uns conhecidos, sob a tutela de Jeremias. Mandei comprar algumas roupas e colocar algum dinheiro, isso deve te garantir o sustento por algum tempo. Lembre-se de me ligar quando você se enlaçar.
*
O resto da história você deve imaginar, conhecemos TK, você nasceu (juro que essa frase nos pareceu menos gay em nossa mente) e cuidou de tudo como se você existisse desde o princípio. TK cumpriu muito bem a parte dele e nos garantiu por mais de um ano nossa existência e cuidado.
O motivo pelo qual você se sentir tão aéreo e ausente quanto B veio ou quando encontramos Leon foi porque nós assumimos e cuidamos de tudo. Assim como fomos nós quem tomamos a facada de B e conversamos tanto com Leon naquela plataforma mental.
Agora, cá estamos, com nossas outras personalidades prestes a encontrarem seu verdadeiro líder. Espero que você tenha lido essa mensagem até o fim e que você entenda que o que fizemos foi pela nossa sobrevivência.

Com carinho,

 Michael Takiamura.