Muito aconteceu desde o dia que começamos a acompanhar a história do Jovem Kuwabara. Nos últimos episódios, descobrimos que ele também é uma personalidade de um outro vampiro, chamado Takiamura.
De onde ele vem? Quem é ele? E como tudo realmente aconteceu?
Todas essas perguntas serão respondidas no programa de hoje.
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Meu caro Kuwabara,
Não tenho palavras para expressarmos o quanto estamos felizes por
finalmente poder nos dirigir diretamente a você nessa carta. Sabemos
que você ainda está se recuperando da sua última luta, mas existem
coisas que precisam ser ditas antes que seja tarde demais. Uma
tempestade está chegando e precisaremos da sua ajuda para que
consigamos sair bem.
Já me adianto que essa carta tratará de assuntos delicados e você
gostará do que você lerá, pois descobrirá que muito do que você
acreditava ser verdade, muito do que você sentiu e muito do que você
se lembra não existiu realmente. Se pudéssemos, te pouparíamos de
toda essa situação, mas voltamos a dizer, uma tempestade
está chegando. Para você realmente nos entender e entender tudo
isso, vamos explicar algumas coisas: a) o que não é verdade sobre a
sua vida e como sempre estivemos presentes, mesmo sem você notar; b)
quem foi Michael Takiamura antes do abraço; c) quem foi Michael
Takiamura depois do abraço; d) como viemos parar em Florianópolis,
e; e) como você realmente nasceu.
Vamos aos fatos, não fomos abraçados aos 20 anos, mas sim aos
32; não somos o 7º filho de uma família só de mulheres, isso
uma das lendas de como nascem os lobisomens; não somos o
filho que treina artes marciais de uma família de vendedores de
macarrão, isso é Kung-fu Panda; não
tiramos nossa motivação da morte dos nossos pais na nossa frente,
enquanto éramos crianças, esse é o Batman; não tivemos
nosso grande chamado para a vida contra o crime depois de tentarmos
enfrentar dois grandões indo incomodar uma garotinha, esse é o
Blankman.
*
Sabemos que você já se questionou se havia alguém lá em cima
olhando por você ou facilitando alguma coisa para o seu lado. Temos
uma boa e uma má notícia: a má notícia é que não tem nada lá
em cima esperando pela gente. A boa notícia é que havia alguém
olhando por você. Muita gente, olhou e ainda olha por você.
Queremos que você note alguns pontos realmente bem interessantes
sobre a sua vida e algumas das “coincidências” e “lances de
sorte da sua vida”.
A) quando você “foi abraçado”, mesmo com a “morte” de dois
Brujahs, ninguém te questionou nada ou te perturbou sobre isso;
B) você conseguiu emprego e proteção do Takashi quase que
instantaneamente, mesmo sendo um filho da lua estrangeiro;
C) você ganhou um par de espíritos protetores mesmo sendo um
“neófito”;
D) quando você invadiu a casa do Nosferatu, você foi caminhando
direto para o sub-solo, mesmo sem conhecer o local e lá, você
correu para pegar algo que não tinha a menor relação com a missão
(por sinal, aquilo ainda está escondido);
G) Alguém te enviou para entregar uma carta para o senhor La Sombra
que quase te forçou a ir para uma missão e estragar diretamente os
planos do Júlio;
F) No dia que você ganhou a Yuki-onna, apareceu um livro com a lenda
da Donzela de Gelo e dos Irmãos da Tempestade;
G) Leon sabia exatamente onde e como te encontrar, além de saber que
você era e da possibilidade de você ser um shifter;
H) Por fim, subitamente, a Jéssica achou que seria uma boa ideia ter
você como um dos peões dela, mesmo com você tendo a fama de trazer
problemas;
Viu? Essas são apenas algumas das situações onde influenciamos e
mexemos alguns pauzinhos para o seu bem. Para o nosso bem. Isso, que
ainda nem falamos dos apagões e dos sonhos que você teve. Na
realidade, éramos nós que estávamos assumindo o controle.
Mas bem, agora que você já sabe o que não é verdade na nossa
história, vamos contar o que É verdade.
*
Nasci no dia 13 de outubro de 1972. Era o primeiro filho que vingou
de Hitoshi Takiamura e Teruko Takiamura, fui registrado com o nome de
Michael Haru Takiamura. As fotos mostram que era bebê gordinho e
saudável.
Na minha infância, passei bastante tempo brincando com as outras
crianças, na Liberdade. Por causa da minha grande imaginação,
acabava criando novos jogos e formas de brincar. Fui uma criança
feliz e arteira.
Na minha adolescência acabei me isolando. Passava um bom tempo
comigo mesmo. Seja estudando, ouvindo música ou lendo. Fazia as
mesmas coisas que os outros jovens, mas tinha a companhia da minha
imaginação. Fui me fechando e me tornando cada vez mais quieto.
Meus pais se preocupavam comigo, mas explicava para eles - no auge
da minha sabedoria dos 14 anos - que era muito mais divertido ficar
sozinho do que sair com aquele bando de Zé Ruela que não sabia a
diferença entre curtir um anime e se tornar uma árvore de natal por
causa daquele anime. Se quisesse fazer algum amigo, criaria um para
mim. Também, foi nessa época que comecei a fazer aulas de Kendô
com Otoosan e ajudar a Okaasan com Ikebana.
Foi nesse ritmo que segui minha vida por mais 7 anos. Como um cara
normal, mas meio imaginativo que estava orgulhosamente na 4 fase de
engenharia de mecatrônica na Universidade de São Paulo. Mas, como
diria o poeta, a vida é uma caixinha de surpresas.
Descobrimos que aqueles problemas que Otoosan tinha para ir no
banheiro eram consequência de um câncer intestinal. Mais do que
isso, o câncer já estava em estado avançado e Otoosan
faleceu em menos de 4 meses depois. Daí, em diante, minha vida
começou a entrar em espiral descendente.
*
Tentei seguir com a graduação e me formar, mas tive que parar pois
algum tempo depois Okaasan quem ficou doente. Sem seu esteio e
seu parceiro, ela perdeu o rumo e parou de se cuidar. O laudo médico
pode até dizer que ela morreu de uma pneumonia mal cuidada, mas sei
que ela morreu de amor.
Não que sinta algum tipo de ressentimento pela morte dos meus
genitores, mas o fato é que não estava preparado para o que viria
em seguida e acabei comendo o pão que o diabo amassou. Tive que me
virar em bicos trabalhando em lanchonetes, sendo homem sanduíche e
vendendo quase tudo o que tinha.
O Mesmo assim, não desanimei. Achava que teria um futuro grande
esperando por mim e passava as noites sonhando em como me tornaria
uma pessoa foda e reconhecida.
De certa forma, creio que esses pensamentos e fantasias me ajudaram
bastante. Quando não sabia a quem recorrer ou pedir conselho,
imaginava Otoosan com suas palavras de sabedoria. Ou quando
estava com medo, imaginava Okaasan me dando coragem – foram
muitos momentos onde senti medo ou fiquei em dúvida de como agir.
*
No meu aniversário de 24 anos, minha vida começou a mudar. Comecei
a ter a estranha sensação de que alguém me seguia e observava. Na
época parecia algo surreal que pudesse ter algum tipo de stalker,
mas a sensação não ia embora.
Logo depois do meu aniversário, achei um panfleto na caixa de
correspondência, dizendo que a nipo-paulista tava procurando
professores de japonês. Foi uma entrevista fácil. Aparentemente
fui o único que se interessou pela vaga. Com desse emprego, tudo
começou a fluir e logo em seguida consegui uma vaga para lecionar
Kendô.
Comecei a me sentir mais confiante, mas aquela sensação de ser
seguido não sumia.
Aos 26 anos, me mudei para uma pequena kitnet alugada perto da
Augusta. Ficava meio contra-mão e era numa vizinhança meio tensa,
mas era algo que consegui com o MEU trabalho e amava morar lá.
Aos 27 dei meu grande pulo em nível social e comprei uma lambreta
vermelha. Cara... como amava aquela lambreta vermelha.
Aos 28 anos minha vida mudou novamente ao conhecer a mulher da minha
vida.
Aos 32 ela me matou.
Mas uma coisa de cada vez, não precisamos por os carros na frente
dos bois.
*
Pois bem, tudo começou alguns meses depois de comprar a lambreta
vermelha. Durante a última aula noturna, notei que havia um aluno
novo a mais na turma. Achei aquilo estranho porque sempre me avisam
quando vai entrar alguém novo para me preparar e passar atividades
mais leves e explicar um pouco sobre o caminho da espada. Esperei até
o fim da aula e fui falar com meu novo aluno.
Quando ele tirou o ken, meu queixo foi ao chão. Por trás
daquele capacete, havia uma bela garotinha com cabelos verdes e
grandes olhos. Mais do que isso, era uma menina fofa e doce que ficou
conversando comigo, de forma animada, até fechar a sede. Ofereci
carona para ela, mas ela disse que estava de boa e que não precisava
me preocupar.
Aquilo começou a fazer parte da minha rotina. Trabalhava 3 noites
por semana na parte do Kendô e em todas as aulas ela aparecia
e ficava conversando comigo até a sede fechar, indo embora sozinha.
B – que levou um bom tempo até descobrir que seu verdadeiro nome
era Beatrice – era uma garota extramente interessante. Havia algum
tipo de magnetismo nela que fazia sempre querer estar perto dela e me
sentia à vontade para falar sobre qualquer coisa. Apesar de parecer
tão jovem (ela disse ter 18 anos, mas tinha quase certeza que ela
tinha uns 15), ela costumava ter opiniões bem maduras e um tanto
quanto secas sobre filosofia e relacionamentos interpessoais.
E assim seguiu-se minha vida por mais um maravilhoso ano e meio.
B-chan se tornou, mesmo com as mudanças de humor, minha melhor amiga
e minha confidente.
*
Faltando 3 meses para completar 29, B-chan me veio com um convite
estranho:
- Papai quer te conhecer e te convidou para ir lá em casa no fim da
semana, logo após os treinos.
- Ahn?! Como assim? - Fiquei realmente desnorteado com aquele
convite.
- Bem – Começou ela – Falo de você para ele há algum tempo.
Pra ser sincera, falo bastante de você para ele. Finalmente,
consegui despertar algum interesse nele para te conhecer.
- B-chan, você tem certeza que essa é uma boa ideias? Sabe, não
sei se vou causar uma boa impressão. Quer dizer, sou apenas um mero
professor de uma associação cultural.
- Não se preocupe, ele vai gostar de você, basta você ser você
mesmo. Talvez você também conheça um amigo da família que vai se
interessar bastante pelas suas habilidades com a espada.
- Céus. Gostaria mesmo de ter a sua confiança. Mas me diga, que
tipo de pessoas são esses caras?
- Nhaaa, relaxe, você vai descobrir amanhã. Agora tenho que ir.
Kissu, kissu.
E saiu saltitando sem dar tempo de responder ou pensar em algo. Às
vezes ela fazia esse tipo de coisa e tinha essas mudanças súbitas.
Quase parecendo ser outra pessoa.
A visita na casa de Leon foi experiência bem bizarras. Tive que
falar sobre os mais diferentes assuntos, responder aleatórias e
beber bastante vinho.
Também tive que enfrentar o amigo da família (Jeremias) numa
partida “amistosa” de Kendô. Digo amistosa porque fiquei
quase 30 minutos desviando e tentando aparar (com pouco sucesso) os
golpes dele. Estranhamente, ele nem parecia ter se cansado. Me senti
o pior dos espadachins e ainda tive que ouvir uma série de
comentários sobre a minha respiração, postura e como parecia
esquecer que um artista marcial deve encarar seu corpo como um
instrumento para servir à arte de guerra.
Saí de lá às 4 da manhã meio inebriado com o ar, meio sem saber o
que tinha acontecido e com a estranha sensação de ter sido testado
em níveis que não compreendia muito bem.
No treino da semana seguinte, B-chan não apareceu sede. Foi a
primeira vez que ela faltou desde o dia que eu a conheci.
No treino seguinte, ela também não apareceu.
Lá pela seguinda semana comecei a com medo de ter dado alguma bola
fora infinitamente grande. Pensei em passar perto da casa dela, mas
notei que também não me lembrava direito onde ela morava. Ora tinha
certeza que a casa ficava numa travessa na Faria Lima, ora poderia
jurar que a casa ficava em algum ponto perto da Paulista.
*
Com o sumiço dela, fui me isolando mais e mais. Minhas conversas
comigo mesmo se intensificaram.
Outro ponto estranho era que ninguém parecia se lembrar dela, ou
saber quem era Beatrice.
Como isso era possível? Será que minha amiguinha era apenas uma
tentativa de um solteirão de quase 30 anos de se sentir menos
sozinho? E se, tudo não passou de um sonho? Ela era real? O que é
mesmo real? Estou enlouquecendo? Pode um louco questionar sua
sanidade? Aquele zumbido no fundo da minha cabeça eram...
...vozes?
Andava distraído, sem fome, meio desanimado. Fiquei nesse estado de
desolação por uns 9 meses. Perdi quase que 15 kilos e quase fui
expulso da associação.
*
Mas, como uma pasta de dente chega ao seu fim, toda essa sensação
ruim de não saber se ela existiu, de questionar minha sanidade, de
ficar ouvindo aquelas vozes ao fundo acabou.
Num instante, estava lá.
No outro no estava.
Assim como o medo do escuro parece algo bobo durante o dia, todos os
medos que senti da falta da minha B-chan passaram.
Mal sabia que minha vida estava prestes a dar um novo salto.
*
Mais ou menos uns 3 dias depois de tudo isso acontecer, quando estava
prestes a dormir depois de uma aula excepcionalmente animada, a
campainha toca.
Achei aquilo realmente estranho, afinal, não tinha amigos, quanto
mais amigos que pudessem aparecer naquela hora da noite.
Sorrateiramente, fui até a cozinha, peguei um facão e fui atender a
porta.
Lá estava ela. Baixinha, com cabelos verdes e com uma expressão
extremamente irritada. Cheguei a me questionar se estava feliz por
vê-la. Para ser bem sincero, acho que estava mais é com medo –
muito medo – dela.
Creio que em outras situações, iria abraçá-la e dizer o quanto
senti sua falta. Uma voz interna me disse que isso era uma idéia
ruim. Ela se adiantou e falou apenas duas frases.
- Papai quer vê-lo. Vamos?
Aquilo parecia mais como uma ordem do que um convite e não teria
coragem para desobedecer qualquer coisa que ela me pedisse naquele
momento.
Chegando lá, encontrei um Leon totalmente diferente. Ao invés
daquele cara mais estilo paizão doce e meio rockeiro, o Leon que me
esperava estava mais para grande homens de negócios, com um terno
que parecia valer muito mais do que a minha casa e minha lambreta
vermelha juntas.
O que B tinha de irritada e mal humorada, Leon completava com um leve
interesse e fria cordialidade.
- Sinto muito pelo tratamento recebido, ela não tem passado muito
bem nos últimos dias desde que perdeu um brinquedo. - Ele disse, ao
me cumprimentar. Aquilo não me fazia o menor sentido e ele não
parecia ter intenção de me explicar. Ao invés disso, ele seguiu: -
Por favor, tome um assento e beba um gole de vinho, nosso tete-à-tete
será breve, mas nem por isso devemos esquecer dos bons modos. -
Comecei a beber e me questionar quando que essa noite iria acabar.
- O motivo pelo qual eu o convoquei aqui foi para lhe fazer uma
proposta de emprego. Tenho ouvido tanto sobre você - ele se vira
para ela - que pretendo lhe dar uma chance, mesmo me questionando
sobre as suas capacidades para me servir.
- E qual é o serviço que você tem em mente, senhor Leon? - Quando
que essa sessão de ofensas gratuitas iria acabar? E qual é o motivo
para isso?
- Quero que você trabalhe como acompanhante, motorista, segurança e
secretário particular para minha descendente. Você trabalhará das
19:00 às 6:00, cuidará da manutenção dos nossos carros e ficará
por perto para fazer o que ela requisitar. Você não ouvirá nada,
não falará nada e será invisível em todo o resto do tempo, à
menos que te digam para fazer o contrário. O seu salário inicial
será de R$5.500,00 mais todas as despesas de alimentação,
transporte e roupas. Além disso, você receberá alguns treinamentos
sobre como se portar, direção defensiva, luta com armas e quaisquer
outras habilidades que acharmos que você precisa melhorar. O seu
turno começa em uma semana, que acreditamos ser o tempo necessário
para você se despedir daquele local onde você trabalha, conseguir
roupas descentes e poder descansar. Alguma pergunta?
Ainda hoje, não temos certeza se perdemos algum ponto da conversa,
mas não nos lembramos de ter dito que aceitaríamos o serviço mas
estávamos com medo de dar uma de engraçadinho e perder essa grande
bocada.
*
Entrei nos meus 30 anos, com um emprego muito bom. Ganhando muito
dinheiro mas comendo o pão que o diabo amassou. Trabalhar para B era
algo maravilhoso, mais ou menos na metade do tempo. Na outra metade,
era uma amostra grátis do inferno.
Nessa época que comecei a notar algumas coisas estranhas tanto nela
quanto no seu pai. Ambos eram extramente caprichosos e com graves
mudanças de humor (bipolaridade?), eles nunca saíam durante o dia,
iam com frequência em uma sala comercial na Paulista, pareciam ter
longos diálogos falando sozinhos e tinham quase que um 6º sentido
para saber o que estava pensando. Ambos pareciam ter uma queda para
se envolver com garotos e garotas de programa, mas sem nenhuma
preferência em especial. E tinham alguns pedidos realmente
estranhos.
No top 5 dos pedidos mais sem noção de B, consigo listar:
* o dia que ela pediu para cobrir todos os espelhos da casa para a
visita de um futuro associado;
* que ela não me deixava exterminar nenhum tipo de animal ou ser
vivo que estivesse na casa ou nos arredores, por mais sujo ou nojento
que pudesse ser;
* umas 4 ou 5 vezes que ela pediu para lamber o meu pescoço;
* ela mandou me alimentar com comidas ricas em ferro e tomar bastante
sol;
* uma vez por semana, ia buscar e enviar itens no setor de doação
de sangue no hospital;
Eles sempre tinham aquele clima de que estavam prestes a entrar numa
guerra e precisavam se preparar para quando as batalhas começassem.
Hoje, vemos como fomos tolos. Ou inocentes que não enxergavam uma
palma na frente dos narozes. Se tivesse o mesmo clima que eles,
talvez não estivesse morto, agora.
Hoje, vemos que fomos caras de sorte. Se tivéssemos no mesmo clima
que eles, talvez não estivéssemos onde estou agora.
É como naquela música: “Se soubesse tudo o que sei agora, teria
feito tudo exatamente igual”.
Mas bem, vamos falar, agora, sobre como morri e como viemos parar
onde nós estamos.
*
Já estava trabalhando há dois anos e gostava muito daquilo. Apesar
disso, era nítido que a situação estava ficando cada vez mais
tensa. Tanto B quanto Leon andavam muito ocupados, com reuniões e
mais reuniões. Meu trabalho era muito o de motorista.
Numa fatídica noite, tudo deu errado. Era uma reunião num bairro
mais isolado e com fábricas abandonadas. Estava esperando,
calmamente, fumando meu cigarro e olhando para o horizonte, quando
ela veio muito puta. Parecia uma criança mimada que não ganhou um
brinquedo de natal, uma criança assustadora, mas ainda assim uma
criança. Ela entrou batendo a porta e mandou voltar rápido pra
casa, porque tudo tinha saído errado e Leon precisava ser informado
o quanto antes.
Minhas memórias são confusas e tenho palavras para descrever como
foram assustadores aqueles instantes de carro girando, carro batendo
e sendo empurrado. Tudo isso há menos do que um kilômetro de casa.
Meu último pensamento como um ser vivo foram algo do tipo, eles
realmente estavam seguindo a gente.
*
Look around, around, around...
Acordamos num quarto estranhamente familiar, mas sem sabermos bem
onde estávamos. O mundo parecia meio embaçado, meio desfocado. Como
se as cores tivessem sido alteradas. Nosso paladar e olfato pareciam
meio dopados e sentíamos dor em cada maldito osso do nosso corpo.
Onde estamos?
Eu não sei.
Sim, você sabe.
O que aconteceu?
Você não lembra?
Não, não lembro. Me ajude.
Ouvimos vozes discutindo. Duas pessoas berravam bem perto da gente.
Quase conseguíamos ouvir os gritos na nossa cabeça.
Deixe sua mente flutuar.
- COM QUE DIREITO VOCÊ ABRAÇOU ELE?
- COM O DIREITO DE QUEM NÃO QUERIA QUE ELE MORRESSE.
- HAVIAM OUTROS JEITOS DE EVITAR A SUA MORTE.
- PARTE DO CRÂNIO DELE ESTAVA EXPOSTO, NÃO CONSEGUI CONTAR QUANTOS
OSSOS QUEBRADOS E ELE TAVA TODO DESFIGURADO. MESMO SE ELE
SOBREVIVESSE COM O SANGUE, TERIAM GRANDES CHANCES DE ELE VIRAR UM
NÃO-FUNCIONAL. É ISSO QUE VOCÊ QUER? DESPERDIÇAR TODO O TEMPO
INVESTIDO APENAS POR DETALHES COMO IMAGEM PÚBLICA?
*soc, tow, pow*
Insira aqui qualquer onomatopeia para tapa forte pra caralho. Aquele
tapa parece que foi dado na nossa cara. Aquilo nos deixou com muita
raiva. Sentimos, pela primeira vez a ira vermelha subindo pelo corpo.
Ainda bem que estávamos presos.
- Sua garota de tola.- O tom de voz voltou ao timbre mais sombrio,
frio, calmo e assustador. - Depois de todos esses anos comigo, achei
que você já tinha aprendido alguma coisa relevante. A vida de
outros, principalmente do rebanho, não vale tanto quanto me expôr.
Mas bem, vá ver a sua cria que pensarei em como resolver as
suas falhas.
Pausa e silêncio.
Deve ter demorado uns 50 minutos até B aparecer. Vê-la foi quase
como ver um anjo. Na época, não saberíamos dizer o que estávamos
sentindo, mas era algo bem próximo ao amor.
Não vamos entrar em detalhes sobre como foram nossos primeiros dias,
pois você tem uma ideia de como foi. Passamos a primeira semana
amarrado naquela cama enquanto conversávamos e provávamos que não
iria fazer nenhum tipo de besteira como tentar voltar para a minha
vida.
Depois de termos sido transformado, nossa rotina passou a seguir um
ritmo constante. MUITO acelerado, mas constante. Éramos realojados a
cada 4 meses, sempre morando em quartos escuros que tinham uma cama,
livros, abajur e espaço para treinar.
Passamos 7 anos tendo contato apenas com B e Jeremias. Eles vinham
visitar 3 ou 4 vezes na semana, sempre sozinhos e nos treinavam nas
atividades mais variadas. Jeremias falava sobre a vida vampírica,
sobre artes, exercícios, filosofia, etiqueta e cultura geral. B
falava sobre a família, a loucura, ocultismo, a Rede e os dons
vampíricos.
Em 3 ocasiões especiais, recebi a visita de Leon. Em cada visita,
ganhei uma personalidade nova: Stephany Todd (baseada em B), Isaías
Shepherd (baseado em Jeremias) e Ley Stampler (baseado em Leon). Não vou falar sobre
eles, pois ainda me dói muito pensar naqueles que se foram. Além
desse lance das personalidades, Leon versava sobre o nosso lado da
família.
Não sabemos à partir de qual geração foi desenvolvido a linha do
camaleão, mas sabemos que os membros do nosso ramo conseguem se
ligar de uma forma diferente à Rede. Em diferentes situações e por
diferentes motivos, conseguímos sintetizar um pedaço da Trama,
buscar seu conhecimento e seu conteúdo criando uma nova entidade,
com conhecimentos e personalidades próprios. O conhecimento e
correta manipulação dessa habilidade permite criar vampiros
extremamente e adaptáveis à qualquer tipo de situação.
No nosso caso, os laços são criados pela ligação de sangue.
Cremos que, de alguma forma, quando nos enlaçamos à alguém, nosso
cérebro se adapta ao sentimento criado pela pessoa que nos enlaçou.
Esse processo de adaptação permite essa criação de um novo ser.
Podemos dizer que somos os pais (junto com a pessoa que nos enlaçou)
dessa nova personalidade.
O processo de liberação é um pouco mais dolorosos e depende de
cada caso. Em alguns casos, pois precisamos praticamente matar essa
personalidade, já em outros precisamos não darmos mais motivos para
elas ficarem aqui. Além disso, quanto mais tempo, mais adaptado e
maior seja a força de vontade da personalidade, mais difícil será
destruí-la.
E a vida foi seguindo. Li, estudei, treinei a aprendi muito. Sabia
que estava sendo preparado para algo, apesar de não ter ideia do que
era.
*
Na terceira visita de Leon, ele me disse que meu treinamento recluso
estava chegando ao fim e que iria trocar a vida de Tremere aprendiz
para uma vida no mundo lá fora.
Quando ele disse isso, achei que finalmente iria conviver com outros
vampiros ou usar meus dons para poder curtir uma vida boa, mas estava
errado. A noção de vida no mundo lá fora era que poderia viver num
cubículo 2x3, numa vizinhança barra pesada da zona leste (não que
existam vizinhanças boas na zona leste, mas aquela era especialmente
ruim), com direito a sair 3 vezes por semana para me alimentar e
trabalhando dentro de casa fazendo sacolas.
Ao me apresentar ao meu novo cafofo, B me explicou que se
sobrevivesse dois anos seria promovido de um grupo semelhante ao
Esquadrão Suicida (tive que pesquisar para entender que ela estava
falando daquele time dos quadrinhos) e poderia não morrer
imediatamente se falhasse em alguma missão.
*
De alguma forma, consegui sobreviver. Se existe algum Deus, ele deve
ser malkaviano. Cheguei muito perto de ser descoberto e quase me
tornei mestre em ofuscação nesse período.
Nesses anos de serviço, aprendemos um pouco sobre onde tínhamos nos
metido.
Ele tem algumas personalidades, a que mais fala comigo é a o
Stanley. Creio que as personalidades dele tem alguma ligação direta
com o nome delas. Afinal Stan é o apelido natural de Stanely e é
terrivelmente parecido com Satan (apesar de ser bem acurado). A
personalidade que se apresenta ao mundo é Leon e parece ter vindo de
camaLEON como a nossa linha. Ainda cremos visto uma terceira
personalidade que era mais marcial e voltada para o combate (foi essa
a personalidade que te ensinou a despertar as outras).
Conhecemos três personalidades de B: Beatrice, Bianca e Bill. A
princesa doce, a rainha louca e o príncipe guerreiro. Você conheceu
apenas Bianca com a sua loucura, mudanças de humor e vício pela
vitae e Bill com seu jeito prático de ver as coisas que é
capaz de estacar a própria cria para ela aprender a ser um
malkaviano de verdade.
Você não conheceu Beatrice e isso é algo que deveria te deixar
triste. Beatrice é como um frescor de primavera no nosso mundo
hostil. Ela é a garota por nos apaixonamos, que passou tanto tempo
conversando conosco e discutindo sobre as mais diferentes coisas. Meu
coração se alegra só de lembrar da forma como ela mexia a cabeça
para tirar a franja de cima dos olhos ou a forma como ela me encarava
mascando chiclete e conversava comigo.
Poderíamos preencher mais de dez cartas só para falar sobre ela,
mas cremos que isso não seja tão necessário.
Leon é o criador de B e parece ter alguma influência na cidade. Ele
se juntou a alguns outros membros/mortais de certa influência e
criaram um grupo sem nome que eles chamam de a Organização.
Ela é uma organização paramilitar multidisciplinar/culto de
guerra/tentativa de um grupo de seres poderosos de não morrer para
os planos de outros seres poderosos. Nessa vibe meio culto meio grupo
militar, ela não força ou evita guerras, apenas espera, se prepara
e toma um lado.
Ela funciona em células espalhadas por todo o país (talvez por todo
o mundo). Essas células são semi-independentes ou pelo menos as
células daqui de São Paulo sejam assim.
O tempo que ficamos em São Paulo, lidamos com uma (ou algumas)
célula(s) paulista(s).
Mas o que mais importa, e como importa, foi que sobrevivemos e fomos
promovidos a um time menor da organização. Apesar de não ser muita
coisa, já era o suficiente para não morrermos instantaneamente numa
falha.
Em todo o meu tempo de vampiro, consegui descobri poucas coisas sobre
a Organização. Pra ser sincero, você descobriu muito mais do que.
Mas vamos ao que descobri:
- A Organização não possui um nome em especial;
- Ela é uma organização paramilitar multidisciplinar/culto de guerra/tentativa de um grupo de seres poderosos de não morrer para os planos de outros seres poderosos;
- Ela funciona em células espalhadas por todo o país (talvez por todo o mundo);
- Ela possui recursos;
- Ela não força ou evita guerras, ela apenas espera, se prepara e toma um lado;
- Existem pelo menos 3 níveis na organização: as pessoas que aparentemente mandam, as pessoas que não morrem imediatamente ao cometerem um erro e as pessoas que morrem ao cometerem um erro;
Enquanto era membro do Esquadrão, trabalhava sozinho. Recebia
mensagens de um celular especial dizendo para onde deveria ir. Lá
encontrava um pacote com equipamentos e informações da missão.
Nunca me envolvi ou soube quem eram os outros membros ou no que
realmente estava trabalhando.
Quando fui promovido, B me acompanhou em alguns trabalhos. Foi num
desses trabalhos onde as coisas começaram a dar errado, de novo.
*
O trabalho era relativamente simples. Perigoso, mas simples. Iríamos
com um carniçal até perto de uma base anarquista para copiar alguns
arquivos militares de um computador de uma sala em especial.
Não sei em que ponto nós falhamos, mas enquanto estávamos copiando
os arquivos, a sala foi invadida. B conseguiu se ofuscar, mas não
fui tão rápido. Não importa o quão vampírico você seja ou o
quão bem treinado você esteja, uma bala de semi automática sempre
dói. Céus como aquilo doeu. Meu último pensamento antes de cair
foi que deveria ter ofuscado mais rápido.
*
Acordei no meu quarto, recebendo uma transfusão de sangue, meu corpo
me sentia um queijo suíço cheio de sangue. Meu cabelo já estava
duro e seco, assim como minha roupa, assim como a coberta, assim como
a cama, assim como todo o resto do maldito quarto.
B estava no telefone, ela falava num tom rápido enquanto andava pelo
quarto. Já tínhamos aprendido a usar os auspícios para futricar
nas ligações alheias e conseguir ouvir ela falando com Leon.
- Foi terrível – disse ela – acho que eles descobriram o
segurança, ou tinham algum tipo de defesa no computador. Não sei.
Só sei que que quase morremos.
- Ao menos, vocês conseguiram a informação?
- Bem, parcialmente, não tudo, mas não tenho...
- Ótimo. - Cortou ele – vocês acham que foram vistos ou
identificados?
- Não tenho certeza. Talvez sim. Tomei minhas precauções com
aqueles que consegui ver, mas existem as câmeras. E se eles pegaram
Tobias, bem, provavelmente …
- Entendo. Então realmente, precisarei adiantar um dos planos. Como
está o garoto?
- Ele está aqui deitado na cama, recebendo uma transfusão de vitae,
fingindo que está dormindo para ouvir essa ligação.
- Estaque-o que depois passarei mais informações.
Ao ouvir isso, tentei me levantar e fugir, mas estava muito ferido e
fui facilmente estacado pela B.
*
Acordei uma semana depois. No mesmo quarto, com uma mala preparada na
minha frente. Leon estava sentado com as pernas cruzadas olhando pra
mim. Sua roupa bem alinhada, seu olhar sereno e sua cadeira bem
estofada contrastava totalmente com o resto do quarto ainda
ensanguentado. Havia uma mala de viagem na sua frente.
Uma vez disse ao fundo: a julgar pelo tom do sangue, ficamos 2 ou
3 dias apagados, a roupa e a postura indicam que ele passou por
bastante trabalho e está numa posição de liderança e sutil
afetamento, quase como um Ventrue...
- Finalmente você acordou, quero que você preste bem atenção
e só faça perguntas quando for lhe dado à palavra, pois temos
algum tempo mas ele precisa ser bem utilizado. - Me sentei para ouvir
melhor as instruções. - Sua existência está ameaçada aqui e ter
você aqui me colocará em uma possível situação de risco.
Normalmente isso traria a sua morte, mas você já mostrou seu valor
e lhe concederei o privilégio de poder viver. Falei com alguns
associados [será que era a associação?] e consegui negociar bons
termos. Preste bem atenção atenção no que eu expliquei para meu
associado:
1º Minha cria abraçou por impulso uma pessoa que estava de olho há
algum tempo;
2º Esse neófito trabalhou por algum tempo para mim e eu estava
quase conseguindo trazer essa cria ao público sem causar nenhum tipo
de mal-estar na cidade;
3º Ele e minha cria cometeram uma falha em um determinado trabalho e
estão sob risco de vida;
4º Mandarei cada um para o exílio em um lugar diferente, com as
memórias de meu último descendente apagadas para ele achar que é
um neófito abandonado;
5º A cria trabalhará em troca de abrigo, segurança e moradia até
ele conseguir se manter vivo;
6º Meu associado tem plenos direitos de fazer o que quiser desde que
não leve a cria à morte final e corrobore com a história do
neófito;
7º Minha assinatura nesse contrato se dará por você se ligando ao
sangue com meu associado.
- Alguma pergunta?
Balancei negativa a cabeça.
- Ótimo, agora vamos aos pontos que VOCÊ precisa saber:
1º Não vou apagar a SUA memória.
2º Quando você se enlaçar, será um novo EU para você;
3º Modificarei a memória de seu NOVO eu;
4º Foi foi abraçado por acaso, quando acordou encontrou ESSA carta
[agora você já sabe como conseguimos a nossa carta];
5º Você usará esse tempo em Florianópolis para TREINAR e se
aperfeiçoar. Dentro de 10 ou 20 anos acontecerão eventos
tumultuosos e quero ter bons soldados.
- Alguma pergunta?
Balancei novamente a cabeça.
- Ótimo. Agora vem a última parte do que precisamos fazer. Mas não
serei quem fará isso. O próprio Leon será responsável por levar
seus outros EUs ao alento. Change.
Foi a primeira vez que vimos ele mudar. Num simples piscar, os olhos
dele mudaram daquele azul gélido para o castanho tão calmo, doce e
tranquilo.
*
Uma personalidade não some simplesmente. Não é o tipo de coisa que
pode simplesmente morrer. Esse é um ponto importante e quero que
você preste realmente atenção nisso. Cada personalidade É parte
de você. É parte de nós. Somos todos um, mas o sangue que corre em
nossas veias potencializa cada parte e cada traço, junta com o
sangue que recebemos e acaba criando um novo ser.
Quando você olhar novamente para suas personas quero que você
entenda que existe um pouco de cada um dos seus aliados dentro de
você.
O processo de encontrar o alento consiste em compreender isso e se
tornar uno com a sua persona e notar que não existe razão
para que a sua mente esteja separada se podemos estar juntos (em
outras palavras, você precisa não dar mais motivos para aquele
pedaço da sua personalidade estar separado de você). Não é
um processo fácil, mas é possível de fazer.
Depois de muito tempo, conseguimos levar a um alento temporário Stephany, Isaías e Ley. Em algum canto de nossa mente, existem três personas quase tão velha quanto nós e que logo despertarão.
Depois dessa experiência quase que religiosa, Stanley voltou ao
controle, se levantou e nos disse.
- Seu voo sai em 3 horas, aproveite para tomar um banho, na sua
bagagem tem instruções de onde ir. Você ficará na casa de uns
conhecidos, sob a tutela de Jeremias. Mandei comprar algumas roupas e
colocar algum dinheiro, isso deve te garantir o sustento por algum
tempo. Lembre-se de me ligar quando você se enlaçar.
*
O resto da história você deve imaginar, conhecemos TK, você nasceu
(juro que essa frase nos pareceu menos gay em nossa mente) e cuidou
de tudo como se você existisse desde o princípio. TK cumpriu muito
bem a parte dele e nos garantiu por mais de um ano nossa existência
e cuidado.
O motivo pelo qual você se sentir tão aéreo e ausente quanto B
veio ou quando encontramos Leon foi porque nós assumimos e cuidamos
de tudo. Assim como fomos nós quem tomamos a facada de B e
conversamos tanto com Leon naquela plataforma mental.
Agora, cá estamos, com nossas outras personalidades prestes a
encontrarem seu verdadeiro líder. Espero que você tenha lido essa
mensagem até o fim e que você entenda que o que fizemos foi pela
nossa sobrevivência.
Com carinho,
Michael Takiamura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário